quarta-feira, 23 de maio de 2012

"Jorrou dinheiro empresarial à repressão política", diz Kucinski

O livro Memórias de uma guerra suja, depoimento do ex-delegado do DOPS Claudio Guerra a Marcelo Netto e Rogério Medeiros, foi recebido inicialmente com certa incredulidade até por setores progressistas.

Há revelações ali que causam uma rejeição visceral de autodefesa. Repugna imaginar que em troca de créditos e facilidades junto à ditadura, uma usina de açúcar do Rio de Janeiro tenha cedido seu forno para incinerar cadáveres de presos políticos mortos nas mãos do aparato repressivo.

O acordo que teria sido feito no final de 1973, se comprovado, pode se tornar o símbolo mais abjeto de uma faceta sempre omitida nas investigações sobre a ditadura: a colaboração funcional, direta, não apenas cumplicidade ideológica e política, mas operacional, entre corporações privadas, empresários e a repressão política. Um caso conhecido é o da Folha da Tarde, jornal da família Frias, que cedeu viaturas ao aparato repressivo para camuflar operações policiais.

Todavia, o depoimento de Guerra mostra que nem o caso da usina dantesca, nem o repasse de viaturas da Folha foram exceção. Esse é o aspecto do relato que mais impressionou ao escritor e jornalista Bernardo Kucinski, que acaba de ler o livro. Sua irmã, Ana Rosa Kucinski, e o cunhado, Wilson Silva, foram sequestrados em 1974 e desde então integram a lista dos desaparecidos políticos brasileiros. Bernardo atesta: "Esta tudo lá: empresas importantes como a Gasbras, a White Martins, a Itapemirim, o grupo Folha e o banco Sudameris, que era o banco da repressão; o dinheiro dos empresários jorrava para custear as operações clandestinas e premiar os bandidos com bonificações generosas".

No livro, Claudio Guerra afirma que Ana Rosa e Wilson Campos – a exemplo do que teria ocorrido com mais outros oito ou nove presos políticos – tiveram seus corpos incinerados no imenso forno da Usina Cambahyba, localizada no município fluminense de Campos.

A incredulidade inicial começa a cair por terra. Familiares de desaparecidos políticos têm feito algumas checagens de dados e descrições contidos no livro. Batem com informações e pistas anteriores. Consta ainda que o próprio governo teve acesso antecipado aos relatos e teria conferido algumas versões, confirmando-as. Tampouco o livro seria propriamente uma novidade para militantes dos direitos humanos que trabalham junto ao governo.

O depoimento de Guerra, de acordo com alguns desses militantes, teria sido negociado há mais de dois anos, com a participação direta de ativistas no Espírito Santo. A escolha dos jornalistas que assinam o trabalho – um progressista e Marcelo Netto, ex-Globo simpático ao golpe de 64 – teria sido deliberada para afastar suspeitas de manipulação. Um pedido de proteção para Claudio Guerra já teria sido encaminhado ao governo. Sem dúvida, o teor de suas revelações, e a lista de envolvimentos importantes, recomenda que o ex-delegado seja ouvido o mais rapidamente possível pela Comissão da Verdade.

Bernardo Kucinski, autor de um romance, K, – na 2ª edição – que narra a angustiante procura de um pai pela filha engolida no sumidouro do aparato de repressão, respondeu a quatro perguntas de Carta Maior sobre as Memórias de uma Guerra Suja:

Carta Maior: Depois de ler a obra na íntegra, qual é a sua avaliação sobre a veracidade dos relatos?Kucinski: As confissões são congruentes e não contradizem informações isoladas que já possuíamos. Considero o relato basicamente veraz, embora claramente incompleto e talvez prejudicado pelos mecanismos da rememoração, já que se trata da confissão de uma pessoa diretamente envolvida nas atrocidades que relata.

CM: Por que um depoimento com tal gravidade continua a receber uma cobertura tão rala da mídia? Por exemplo, não mereceu capa em nenhuma revista semanal 'investigativa'. Kucinski: Pelo mesmo motivo de não termos até hoje um Museu da Escravatura, não termos um memorial nacional aos mortos e desaparecidos da ditadura militar, e ainda ensinarmos nas escolas que os bandeirantes foram heróis; uma questão de hegemonia de uma elite de formação escravocrata.

CM: Do conjunto dos relatos contidos no livro, quais lhe chamaram mais a atenção?Kucinski: O episódio específico que mais me chamou a atenção foi a participação direta do mesmo grupo de extermínio no golpe organizado pela CIA para derrubar o governo do MPLA em Angola, com viagem secreta em avião da FAB.

CM: O que mais ele revela de novo sobre a natureza da estrutura repressiva montada no país, depois de 64?Kucinski: Fica claro que as Forças Armadas montaram grupos de captura e extermínio reunindo matadores de aluguel, chefes de esquadrões da morte, banqueiros do jogo do bicho, contrabandistas e narcotraficantes. Chamaram esses bandidos e seus métodos para dentro de si. Esses criminosos, muitos já condenados pela Justiça, dirigidos e controlados por oficiais das Forças Armadas, a partir de uma estratégia traçada em nível de Estado Maior, executavam operações de liquidação e desaparecimento dos presos políticos, o que talvez explique o barbarismo das ações.

Também me chamou a atenção a participação ampla de empresários no financiamento dessa repressão, empresas importantes como a Gasbras, a White Martins, a Itapemirim, o grupo Folha – que emprestou suas peruas de entrega para sequestro de ativistas políticos –, e o banco Sudameris, que era o banco da repressão; dinheiro dos empresários jorrava para custear as operações clandestinas e premiar os bandidos com bonificações generosas. Está tudo lá no livro.


Fonte: Carta Maior

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