quinta-feira, 24 de maio de 2012

O mercado da fome

O mercado da fome

Tem 59 anos e nunca dá entrevistas. O seu nome ou o da sua empresa não dizem nada de especial. No entanto, nas suas mãos passa a maior parte dos alimentos que podemos imaginar.

A Cargill é uma das quatro empresas que controlam 70% do comércio mundial de alimentos. Enquanto o mundo enfrenta a maior crise de alimentos nas últimas décadas, eles fazem dinheiro com a "leitura do mercado".

Vamos ver como funciona.

Cargill ao pequeno almoço

O leitor não costuma pensar nisso, mas o pão do seu pequeno almoço é um produto mais valioso que o petróleo. A farinha com a qual é feito tem um nome:  Cargill.
E Cargill é também o nome da gordura da manteiga que suaviza a fatia e o glicose da compota.

Cargill é a alimentação que engorda a vaca e a galinha que fez os ovos prontos para ser fritos.
Cargill é o grão de café e a semente de cacau, a fibra dos biscoitos, assim como o óleo de soja. E o adoçante das bebidas não alcoólicas, a carne dos hambúrguer, a farinha da massa.
Cargill.
E o milho dos nachos, o óleo de girassol, os fertilizantes fosfatados?
E o amido que as indústrias do petróleo refinam para converte-lo em etanol e mistura-lo com a gasolina? Adivinhem. 



Inútil procurar o nome da empresa nos rótulos: a Cargill atravessou a história na ponta dos pés.

Como é possível que uma empresa fundada em 1865, com 131.000 empregados em 67 Países, com um volume de negócios anual de 120 milhões de Dólares, quatro vezes maior do que a Coca-Cola e cinco vezes o McDonald, possa ser tão desconhecida?
Como é que uma empresa tão grande, com receitas que ultrapassam as economias do Kuwait, do Peru e de outros 80 Países, conseguiu passar despercebida?

Em parte porque é um negócio de família. Sim, os números são uma surpresa, mas a Cargill não está na Bolsa de Valores e não deve nada a ninguém.
Os membros são um grupo de descendentes dos fundadores, os irmãos William e Samuel Cargill, agricultores de Iowa, que criaram um império no século XIX com um silos de grão conectado à ferrovia numa pequena cidade na pradaria, que nem existia no mapa.
Mais tarde, um cunhado, John MacMillan, tomou as rédeas e durante décadas Cargill e MacMillan acrescentaram silos, fábricas, minas de sal, matadouros e uma frota de navios comerciais.

Hoje, cerca de 80 descendentes dividem os lucros e jogam golfe. Pouco se sabe acerca eles, exceto que nos feriados os homens usam usam saias escocesas para homenagear os antepassados. E que sete sentam no conselho de administração e estão na lista de Forbes dos mais ricos do planeta, com fortunas que avaliadas em cerca de 7.000 milhões cada.

O presidente da empresa é Greg Page, um tipo calmo que gosta de dizer, lentamente, que a Cargill é dedicada "à comercialização da fotossíntese".


A leitura do mercado

Na realidade, não há muito para rir.

Este ano os preços dos alimentos básicos subiram: o trigo 80%, o milho 63%, o arroz quase 10: os três cereais que fornecem comida à humanidade.

A FAO adverte, são máximos históricos, maiores do que os preços que em 2008 causaram protestos em 40 Países e reduziram 130 milhões de pessoas à fome.
E os preços continuam a subir, tal como prevê o Financial Times.
O preço dos cereais é crítico para a segurança alimentar porque é o elemento básico dos Países pobres. Se os preços continuarem a subir, haverá novas revoltas.

As causas são múltiplas.
Um conjunto de secas, más colheitas e especulação. Algumas pessoas ganham dinheiro. E entre elas há empresas gigantescas que controlam o comércio mundial dos cereais.

Cargill triplicou no último semestre e os lucros atingem mais de 4000 milhões de Dólares, um recorde alcançado em 2008 no auge da crise alimentar. A empresa tinha apostado que a seca na Rússia, um dos maiores fabricantes do mundo, teria obrigado Vladimir Putin a proibir as exportações para garantir o consumo doméstico.
E acertou.

Explica o porta-voz da Cargill: 
Fizemos um bom trabalho de leitura dos mercados e reagimos rapidamente
Reagir? E como? É, essencialmente, jogar Monopólio, comprando as colheitas no mercado do futuro, isso é, antes que seja plantada uma só semente;  e vende-los num outro lugar do planeta, onde é mais rentável.

As grandes empresas como a Cargill não possuem terra, baseiam o próprio imenso poder na distribuição: preferem que sejam os agricultores a correr os riscos das más colheitas. Preferem esperar: cedo ou tarde vai haver uma catástrofe algures no planeta, então é altura de transportar e vender.


70 dias de autonomia. Em breve 64.

Pode ser um jogo arriscado.

A Cargill, no caso da Rússia, previu a escassez, previu antes de todos os outros por ter um serviço de intelligence que tem sido comparado ao utilizado pela CIA: satélites de comunicações, sensores meteorológicos e um exército de repórteres e informadores.

Assim conseguiu bater os concorrentes: os compatriotas da Archer Daniels Midland (ADM) e Bunge, os franceses da Louis Dreyfus. Estas quatro empresas, todas centenárias, todas de propriedade familiar e todas muito reservadas, controlam cerca de 70 por cento do comércio mundial.

Estas empresas ganham com a crise e com as consequências dela.
Após as revoltas dos Países da África do Norte, outros Estados preferiram aumentar as importações: a Arábia Saudita, por exemplo, mas também o México, castigado pela recente crise nas tortillas, onde grupos de desesperados armados com pedras e catanas assaltam comboios carregados com trigo. 

Mas armazenar provoca a subida dos preços. Pura lei da procura e da oferta. E a procura está a crescer. Porque há aumento da população e porque as classes médias emergentes na China e na Índia querem comer mais e melhor.
As inundações na Austrália e no Paquistão também têm contribuído para a escassez de trigo. As actuais reservas do mundo totalizam 432 milhões de toneladas, o que significa apenas 70 dias de consumo, que irá diminuir para 64 na primavera.

É um jogo bem perigoso: o preço global combinado de cereais, óleos vegetais, produtos lácteos, carne e açúcar subiu nos últimos seis meses consecutivos e ultrapassou os níveis de alarmes alimentares. E há espaço para que soba ainda mais caso a vaga de calor na Argentina continuar ou se Ucrânia e Rússia voltarem a ter más colheitas.


O fim da comida barata

A FAO prevê que os preços vão continuar a subir pelo menos até 2015.

As razões? As alterações climáticas, por exemplo: por cada grau que a temperatura sobe, é perdido dez per cento da produção agrícola.

A era da comida barata acabou.

Preços mais altos? Possibilidade de grandes lucros? Alguém nunca dorme e não perdeu de vista estas possibilidades. Este alguém é Wall Street.

Os lucros dos futures dispararam 65 por cento no ano passado. Bancos de investimento, fundos de pensão e de alto risco (hedge funds) estão a fazer a festa à custa da fome de milhões de pessoas. Aproveitam de tais mecanismos sofisticados que permitem efectuar operações de compra e venda com percentagens muito pequenas do valor de mercado.


Pequenos detalhes

Então qual o possível futuros problema da Cargill?

Uma acção do International Labor Rights Fund, como em 2005, que acusou Cargill, Nestlé e Archer Daniels Midland num tribunal federal em nome das crianças que foram traficadas do Mali para a Costa do Marfim e forçadas a trabalhar 12 a 14 horas por dia nas plantações de cacau com pouca comida, sem dormir e frequentes abusos físicos?

As acusações de violações dos direitos humanos no Uzbequistão, onde a Cargill é o maior comprador de algodão?
Uma investigação como a causada pelas 63.000 toneladas de sementes de trigo tratadas com metilmercúrio, uma prática proibida na maioria dos Países ocidentais, mas que a Cargill decidiu experimentar em 1970 no Iraque, e que teve como resultado a morte de 93 pessoas?

Uma ampla recolha de produtos, como a de Outubro de 2007, quando quase 850 mil hambúrgueres de carne ficaram contaminados com Escherichia coli?

Uma proibição de exportar, como em Março de 2009, quando o Serviço AQIS da Austrália suspendeu temporariamente a licença da Cargill para exportar carne contaminada com Escherichia coli?

Ou uma condenação como em 2006, quando a Corte Federal do Brasil sentenciou que a Cargill tinha desflorestação a zona e Santarém, Amazónia, para incrementar a produção de soja?

Nada disso, estes são aborrecimentos que fazem parte do jogo.
O verdadeiro perigo tem outro nome: bolhas alimentares.



Fonte: XLSemanal, Wikipedia

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